Após 15 anos desde o lançamento de Tron: Legacy, “Tron: Ares” surge como a terceira peça de um quebra-cabeça visualmente ambicioso, mas dramaticamente desigual. O filme tem plena consciência de sua herança digital — e também de suas limitações. Embora entregue uma experiência visualmente satisfatória e estilisticamente deslumbrante, com o design de produção neon-punk evoluído e uma direção de arte que beira o fetichismo pela simetria e luz, o longa escorrega naquilo que deveria ser o seu momento de maior impacto: o clímax.
Não há como negar que Ares é um baita visual para os olhos. Desde os circuitos urbanos com arquitetura impossível até as armaduras pulsantes dos programas, cada frame parece cuidadosamente renderizado para nos lembrar que estamos diante de uma realidade digital hiper estilizada. A ação, nesse universo, é fluida, ágil e coreografada com precisão quase matemática.
Um dos maiores trunfos do filme — e da franquia como um todo — é a forma como coreografa veículos em movimento. Se nos filmes anteriores as light cycles (as icônicas motos com trilhas de luz) já eram símbolos visuais poderosos, aqui elas retornam em versões mais agressivas e aerodinâmicas, acompanhadas de carros blindados e agora até naves digitais que cruzam os céus do Grid com velocidade vertiginosa. Essas sequências adicionam uma vibração intensa e visceral ao ritmo do filme, servindo como catalisadores de adrenalina em meio à densidade filosófica do roteiro.
A presença dessas máquinas velozes não é apenas decorativa — elas carregam o dinamismo que sustenta a identidade da franquia. E mais: em um universo onde tudo é informação, dados e luz, os veículos se tornam extensões dos próprios personagens, representações de seus impulsos, estratégias e emoções. A inclusão das naves amplia a escala das batalhas e dá ao filme uma dimensão mais épica, abrindo espaço para sequências que exploram não só a velocidade, mas também a verticalidade e o caos aéreo de um mundo em constante mutação.
O background mais pungente aborda a frieza das interações virtuais na era da hiperconectividade — conexões tão passageiras que, como o próprio protagonista ironiza em um diálogo, “não duram nem 30 minutos”. O filme tenta refletir sobre como, mesmo cercados de redes e conexões, nos sentimos cada vez mais desconectados. A jornada de Ares, um programa de IA com desejo de compreender (e experimentar) a humanidade, serve como espelho dessa busca contemporânea por algo mais genuíno, mais duradouro — um antídoto para o mundo líquido das relações digitais.
Essa busca pela essência humana ecoa obras clássicas como Frankenstein, com Ares ocupando o lugar da criatura: um ser criado artificialmente, dotado de autoconsciência e condenado a buscar um sentido para sua existência enquanto lida com o medo e o desprezo de seus criadores. A relação com a humanidade é marcada por fascínio e revolta, construindo um drama existencial que vai além da ficção científica superficial.
Já as referências a Akira são mais viscerais, tanto em conceito quanto em forma. Há cenas de ação que evocam diretamente o anime de Katsuhiro Otomo: as perseguições em motos digitais deixam claro o aceno estilístico, com trailers de luz e explosões de dados substituindo as faíscas e o asfalto de Neo-Tóquio. A construção de ambientes opressivos, onde o caos tecnológico se mistura com figuras distorcidas pelo poder digital, também carrega a mesma energia estética de Akira — especialmente na reta final, onde Ares se transforma em algo além do controle dos humanos ou dos sistemas, lembrando o colapso físico e existencial de Tetsuo.
Visualmente, há uma tentativa deliberada de criar um universo que se aproxime do cyberpunk visceral de Akira, com glitches, mutações digitais e efeitos que transbordam a tela. É a tecnologia como algo que corrompe tanto quanto empodera — um poder instável, deformador, que nos seduz com promessas de controle, mas esconde em seu núcleo uma profunda desordem.
O roteiro, embora apressado em alguns arcos, tem méritos ao tentar amarrar os eventos dos três filmes da franquia. Há menções sutis ao original de 1982 e mais referências diretas ao Legacy, tanto em termos narrativos quanto estéticos. Porém, essa tentativa de unificação soa mais como uma costura apressada do que como um entrelaçamento orgânico. Ares se sai “na média”, como quem sabe que não pode desagradar os fãs antigos, mas também precisa encontrar um novo público. O que resume uma trilogia conectada, mais ou menos.
Outro ponto que chama atenção é a presença de nomes reconhecidos no elenco — rostos conhecidos de franquias de peso, que aqui recebem pouco espaço para realmente brilhar. Jared Leto (‘Esquadrão Suicida’, 2016), no papel-título, entrega uma performance curiosamente contida, quase fria demais para a proposta existencial de seu personagem. Mas nomes como Greta Lee (‘Vidas Passadas’, 2023), Gillian Anderson e Evan Peters (‘X-Men: Apocalipse’, 2016) — todos atores com presença marcante — acabam relegados a papéis que mal arranham a superfície do que poderiam oferecer. Suas presenças funcionam mais como chamarizes de prestígio do que como personagens com arcos significativos. Uma pena, considerando o potencial dramático dessas figuras para alimentar o dilema central do filme: o que torna alguém humano?
O uso da IA como arma é um tema recorrente e bem explorado aqui. O filme nos lembra, com certa contundência, que a tecnologia é, acima de tudo, reflexo de quem a cria. O programa Ares, concebido como ferramenta de guerra, representa a ponta de lança de uma nova corrida armamentista digital — algo assustadoramente atual.
Ainda assim, o filme também lança um olhar crítico sobre a falsa sensação de poder e invencibilidade construída pelas redes e pela tecnologia. Dentro do Grid — e fora dele — o controle absoluto, a presença digital avassaladora e a onipresença algorítmica se revelam frágeis. São máscaras. Ares, por mais poderoso que se torne, descobre que o domínio sobre sistemas não é o mesmo que entendimento do sentimento humano. O que parece força, é, muitas vezes, apenas uma carapaça brilhante ocultando um vazio de sentido e de conexão.
A narrativa se estrutura sobre dualidades claras: homem vs. máquina, controle vs. liberdade, superficialidade vs. profundidade emocional. É nesse jogo de opostos que o filme tenta encontrar seu centro, mas muitas vezes se perde no meio do caminho, preferindo o impacto visual à densidade temática. Ainda assim, a personificação da tecnologia em personagens complexos — como Ares e a nova “Oráculo de Dados”, uma figura que mistura sabedoria ancestral com algoritmos preditivos — oferece boas reflexões, mesmo que breves.
Tron: Ares é um filme que brilha — às vezes ofuscando a própria narrativa. Tem momentos de potência visual e ideias interessantes sobre o papel da tecnologia em nossas vidas, mas se rende à conveniência de resoluções fáceis e a um clímax que soa mais como um “update automático” do que como um fechamento emocionalmente convincente, mesmo que atue como mais um capítulo de uma saga que se estende.
Ainda assim, para fãs do universo Tron, é um retorno que vale a pena — nem tanto pela história que conta, mas pelas perguntas que levanta. Afinal, em um mundo onde tudo é dado e conexão, ainda há espaço para o sentimento? Ou continuaremos fingindo que controle e presença online bastam para nos tornarmos invencíveis?
Nota: ✨✨✨
Por Ester Graziele