Há filmes que contam histórias; outros, como “Os Roses: Até Que A Morte os Separe”, escancaram sintomas sociais. O que poderia ser apenas mais uma sátira conjugal se revela um espelho cruel da forma como os relacionamentos modernos oscilam entre o desejo de intimidade e a ânsia de poder. Jay Roach (‘O Escândalo’, 2019) resgata o esqueleto narrativo de A Guerra dos Roses (1989), mas o que faz aqui é menos uma repetição e mais uma autópsia — não apenas de um casamento em ruínas, mas da própria ideia de amor como construção estável.
A primeira camada do filme é evidente: duas pessoas que um dia se amaram e agora se odeiam, transformando a casa que partilhavam em palco de destruição mútua. Mas a leitura mais instigante surge quando percebemos que essa guerra íntima é também pública. No mundo contemporâneo, em que cada gesto pode ser traduzido em performance — seja nas redes sociais, seja na forma como vendemos a própria felicidade —, o conflito entre os Roses não é apenas deles. É espetáculo, é teatro, é discurso.
É aí que Olivia Colman (‘A Favorita’, 2018) e Benedict Cumberbatch (‘Doutor Estranho no Multiverso da Loucura’, 2022) brilham como o casal Ivy e Theo. Eles não interpretam personagens “realistas” no sentido convencional, mas figuras hiperbolizadas, quase caricaturas do orgulho humano. Rimos do absurdo, mas, em silêncio, reconhecemos os mesmos jogos de poder que atravessam nossas relações: quem cede? quem domina? quem perde menos no processo? A tragicomédia se torna um retrato incômodo do amor líquido de Bauman — intenso, mas instável, baseado mais na preservação do eu do que na construção do nós.
Roach conduz essa engrenagem com ironia e crueldade calculada. A casa, gradualmente transformada em ruína, não é apenas cenário: é metáfora do próprio casamento, corroído até os alicerces. Cada porta quebrada e cada objeto destruído simbolizam a erosão de um pacto que já não se sustenta. No limite, não sobra nada além do vazio — um vazio tão barulhento que chega a ser engraçado. O sentimento traduzido através do trabalho de câmera é sutil, porém muito bem pensado. É possível entender a distância criada pelos próprios interesses, os olhares não se encontram mais, o frescor que o amor traz já foi engolido pelos desejos apenas individuais, e nada parece mais encaixar. O que antes seria tudo um pelo outro pode se transformar muito rapidamente na ausência que desejo egoísta cria.
“O casamento é muitas vezes a forma mais cruel de solidão, pois obriga dois seres a se encararem sem nunca poderem se libertar um do outro”, como diz Simone de Beauvoir
“Os Roses” é mais do que uma comédia de guerra conjugal. É um ensaio sobre a falência do amor enquanto contrato, sobre como o afeto se torna campo de disputa em uma sociedade que nos ensina a não perder jamais. Talvez, o gesto mais honesto do filme esteja no seu desfecho: mostrar que, quando o amor se transforma em batalha, a destruição não é acaso, mas consequência inevitável. Rimos nervosamente porque, no fundo, compreendemos — em certas guerras íntimas, vencer é impossível.
– Obrigada por mentir tão mal por mim!
– Por você eu faria qualquer coisa.
– Eu acredito que seja verdade.
Nota: ✨✨✨✨✨
Por Ester Graziele