“O Agente Secreto” – Kleber Mendonça Filho (2025)

O que significa lembrar em um país que insiste em apagar sua própria história? “O Agente Secreto”, novo longa de Kleber Mendonça Filho (‘Retratos Fantasmas’, 2023), mergulha nessa pergunta ao revisitar os anos de chumbo no Brasil. Mais do que narrar perseguições, o filme se dedica a explorar o espaço do não dito — esse território de memórias frágeis, silêncios impostos e identidades ameaçadas. O resultado é um cinema que pensa a memória como campo de batalha.

Desde ‘Bacurau’, Kleber vem construindo uma filmografia que alia o gesto político a uma sofisticação crescente da forma. Com O Agente Secreto, vencedor dos prêmios de Melhor Direção e Melhor Ator (para Wagner Moura) na 78ª edição do Festival de Cannes, o cineasta atinge talvez seu filme mais maduro visualmente — um trabalho de câmera e mise-en-scène que não apenas encena, mas tensiona as brechas da história recente do Brasil.

Ambientado nos anos 70, em plena ditadura militar, o longa mergulha num terreno espinhoso: o da memória. Aqui, não se trata de um passado fixo e cristalizado, mas de um território instável, fragmentado, onde lembranças podem ser forjadas, manipuladas ou simplesmente apagadas. Mendonça constrói sua narrativa como quem lida com arquivos trancados, fotos rasgadas e relatos contraditórios: a memória é sempre um campo de disputa.

Essa disputa, no entanto, não se dá apenas no plano íntimo dos personagens. Ela dialoga diretamente com um Brasil que, na época, forçava seus cidadãos a viverem em segredo — identidades escondidas, vozes silenciadas, vidas inteiras apagadas dos registros oficiais. Ser alguém, naquele contexto, era muitas vezes ser em oculto: existir apenas no subtexto, no sussurro, no testemunho oral que desafiava o esquecimento imposto pelo regime.

É nesse ponto que a atuação de Wagner Moura (‘Guerra Civil’, 2024) encontra sua força. Seu personagem não é um herói convencional, mas um sujeito atravessado pela tensão entre recordar e esquecer. Ele vive à beira do anonimato, como se sua própria identidade fosse um rascunho ameaçado de se dissolver. Moura entrega um trabalho de rara contenção, dando corpo a esse estado limítrofe entre presença e apagamento, memória e silêncio.

O Recife, cidade natal de Kleber, surge como cenário fundamental, não apenas como espaço físico, mas como memória coletiva encarnada em ruas, praias e prédios que carregam cicatrizes históricas. Essa escolha dá ao filme uma camada adicional de pertencimento e testemunho: a cidade é também personagem, guardando os fantasmas que o país tentou esquecer.

O filme, por sua vez, ecoa a ideia de legado: aquilo que permanece e aquilo que se perde entre gerações. O que foi vivido por uns pode ser reduzido a ruídos vagos para outros. A montagem — precisa, quase arqueológica — funciona como um ato de colecionismo: fragmentos de lembranças, imagens que resistem, rastros que ainda buscam sentido. Mendonça filma como se estivesse não apenas contando uma história, mas tentando salvar do esquecimento um conjunto de experiências que o Brasil teima em recalcar.

Mais do que uma narrativa sobre espionagem ou repressão, O Agente Secreto é um ensaio cinematográfico sobre o direito de lembrar. A ditadura não apenas torturou corpos e cerceou liberdades, mas tentou também fabricar vazios na memória coletiva. O longa de Kleber Mendonça Filho resiste a esses vazios, afirmando o cinema como lugar de inscrição, de permanência, de luta contra o apagamento.

É nesse ponto que a teoria do “não dito” ilumina o filme. Kleber não se ocupa apenas do que é mostrado, mas daquilo que se esconde: os silêncios, os gestos interrompidos, as lacunas de uma história que nunca pôde ser contada em plenitude. O não dito se torna parte da dramaturgia, como um eco da própria época em que falar significava arriscar a vida. O silêncio, aqui, não é vazio: é memória reprimida, mas ainda pulsante.

Há ainda uma referência cinematográfica interessante: em um espécie de diálogo, uma referência direta e metafórica para ‘Tubarão’ (1975), de Steven Spielberg, Mendonça sugere que o perigo pode surgir inesperadamente, de maneira silenciosa, assim como os traumas e silêncios da ditadura emergem no cotidiano dos personagens. Que muito dialoga com o personagem comum nas praias do Recife!

Se em Bacurau havia um grito de resistência coletiva, aqui há um mergulho profundo na memória individual e em suas zonas de sombra. O Agente Secreto é menos sobre o que vemos e mais sobre aquilo que o poder tentou esconder. É um filme que nos lembra que recordar, em um país como o Brasil, nunca é um ato neutro — é sempre uma forma de insurgência.

Nota: ✨✨✨✨✨

Por Ester Graziele

Deixe um comentário