Alguns filmes tocam o público como se fossem sussurros do passado, difíceis e delicados, mas impossíveis de serem ignorados. “A Mais Preciosa das Cargas”, animação dirigida por Michel Hazanavicius, é uma dessas obras brilhantes e inesquecíveis. Exibido no Festival de Cannes em 2024 e aclamado pela crítica, o longa francês é uma adaptação do livro “A mercadoria mais preciosa”, de Jean-Claude Grumberg. Com a estreia oficial nesta quinta- feira (17), o filme carrega uma força emocional gigantesca e delicada, que envolve, comove e coloca em debate o pior e o melhor do que há no ser humano.
A história se passa na Polônia durante a Segunda Guerra Mundial, um país controlado pelos nazistas, e marcado pelo medo, fome e opressão. A produção é narrada por Jean-Louis Trintignant, ele apresenta o cenário sombrio em que vive um casal de lenhadores, isolados na floresta coberta de neve com o pouco que a terra e a madeira podem oferecer. Sem filhos e mergulhados na pobreza, representam uma parte da humanidade exaurida, que luta para sobreviver, eles tentam se agarrar a qualquer tipo de força maior que traga sentido em meio ao caos da guerra. A mulher (voz de Dominique Blanc), especialmente, carrega o desejo profundo de ser mãe, um pedido que ela não faz a Deus, mas sim ao “deus do trem” que percorre os trilhos na imensidão da floresta e leva com ele, um apanhado de histórias e sonhos interrompidos brutalmente.
O pedido da Mulher é concedido e, com esse milagre, no entanto, é entregue como um ato de desespero e amor, porque um dos trens que transportam os judeus, chamados no filme de “Sem Coração”, rumo aos campos de concentração, leva um pai a jogar sua filha para fora, tentando salvá-la da morte. A bebê é enrolada em panos e cai na neve, é encontrada pela Mulher que tanto sonhava em ser mãe. E de imediato, não há dúvida: aquele bebê é a resposta ao seu clamor. Para o Lenhador (voz de Grégory Gadebois) , a pobreza era tanta que a ideia de ter uma criança não passava de um fardo, pois seria mais uma boca a alimentar quando nem eles tinham o que comer. O que se desdobra a partir desse ocorrido é um conto profundamente poético sobre amor e resistência. A animação não se esquiva da dor: existem cenas difíceis, diálogos silenciosos e imagens que perfuram o espectador com a lembrança do que foi o Holocausto e que ele não deve ser esquecido. Mas também há beleza, quando nos traços propositalmente reais, nas cores desbotadas, no sombreamento exagerado que evoca um mundo à beira do colapso.
“A Mais Preciosa das Cargas” é uma produção majestosa e impactante, uma verdadeira obra-prima da animação contemporânea. A escolha pelo formato animado não suaviza o impacto. Ao contrário: é uma decisão ousada, que cumpre com exatidão a função de atravessar o espectador. Os contrastes visuais reforçam o absurdo da época e tornam ainda mais simbólica a presença da “carga preciosa”, a menina que conquista o coração do casal e se torna o motivo luta pela sua permanência. Ela representa as vítimas esquecidas, aquelas para quem a redenção ou o acolhimento sequer eram possibilidades. A trilha sonora, sutil e carregada de emoção, embala esse reencontro com a humanidade. Ao final, deixa a reflexão e obriga o público a encarar a pergunta inevitável: como foi possível que essa barbaridade tenha acontecido? A obra é um grito delicado contra o esquecimento. Uma denúncia feita com poesia. Uma homenagem ao amor, à aceitação e ao respeito, como resposta à brutalidade da guerra.
Por Rebeca Furtunato