Em “O Último Azul”, Gabriel Mascaro (‘Boi Neon’, 2015) não filma apenas uma espécie de distopia realista: ele filma o tempo. O tempo do corpo que envelhece, o tempo da memória que resiste, o tempo da água que corre sem pedir permissão.
A jornada de Tereza, uma mulher de 77 anos que recusa o destino imposto de ser isolada em uma colônia para idosos, é menos uma trama e mais uma alegoria. Ao atravessar o rio, ela atravessa também as fronteiras invisíveis que a sociedade ergue contra a velhice. O barco é refúgio e desafio, movimento e insistência. É nesse gesto simples — navegar — que o filme encontra sua força simbólica: a recusa a ser controlada, a recusa a ser silenciada.
A Amazônia, filmada com a delicadeza de quem sabe que cada sombra é testemunho e cada silêncio é política, não surge como pano de fundo, mas como espelho de Tereza. Água e floresta respiram junto com ela, lembrando-nos de que a vida é resistência orgânica, mesmo quando tudo ao redor insiste em sufocar.
Denise Weinberg encarna não apenas uma personagem, mas uma ideia de corpo: frágil e indomável, cansado e desejante. Sua atuação faz da velhice não o fim da linha, mas a abertura de um espaço radical de liberdade. E que atuação mais verdadeira, bem colocada e super palatável.
Mascaro constrói um cinema de contemplação, onde a lentidão não é falha, mas escolha. O ritmo dilatado convida à reflexão: o que significa envelhecer em uma sociedade que transforma o corpo em mercadoria? O que significa sonhar quando tudo ao redor tenta confinar a imaginação?
No fim, o azul do título não é uma cor: é uma condição. Azul como horizonte inalcançável, como respiro profundo, como memória que insiste em permanecer. O Último Azul é menos um filme sobre um futuro distópico e mais um poema sobre o presente: sobre a urgência de viver quando o mundo insiste em nos dizer que já é tarde demais.
Talvez o maior gesto político do filme seja justamente esse: devolver ao espectador a sensação de que a velhice não é ausência, mas excesso. Excesso de lembranças, de afetos, de experiências que não cabem no enquadramento. Tereza carrega em seu corpo não apenas as marcas da idade, mas também uma forma de sabedoria que confronta a pressa do mundo contemporâneo.
Nesse sentido, O Último Azul pode ser lido como uma parábola sobre o tempo: o tempo que não pode ser acelerado, o tempo que não se dobra ao cálculo do capital. É um cinema que ousa desacelerar, que pede atenção ao detalhe, que nos convoca a reaprender a olhar. Assim como as incríveis paisagens e até mesmo os pequenos detalhes que a fotografia captura, a vida merece ser, de fato, vivida e desfrutada por toda a existência no plano terrestre, independente de idade ou qualquer outro porém.
Ao transformar um corpo idoso em protagonista, Mascaro realiza um gesto de subversão estética e política: ele desloca o centro da narrativa para aquilo que nossa cultura mais insiste em apagar. E é aí que o filme encontra sua força simbólica — na constatação de que o futuro não pertence apenas aos jovens, mas também àqueles que já carregam uma vida inteira dentro de si.
Nota: ✨✨✨✨✨
Por Ester Graziele